Che Guevara e a luta revolucionária na Bolívia

Imagem: Malcom Drummond
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MATHEUS ATALIBA DA SILVA*

Comentário sobre a nova edição do livro de Luiz Bernardo Pericás

A breve e marcante vida de Che Guevara, segmentada entre as múltiplas e distintas tarefas por ele assumidas, produziu imensuráveis contribuições práticas e teóricas para a luta pela revolução socialista na segunda metade do século XX, sobretudo nas sociedades subdesenvolvidas, vitimadas pela influência do neocolonialismo e do imperialismo. Neste sentido, Luiz Bernardo Pericás dedica Che Guevara e a luta revolucionária na Bolívia à derradeira jornada do “guerrilheiro heroico” no Oriente boliviano.

Embora a trajetória do Che Guevara naquele país tenha culminado em sua morte, as suas ações contribuíram para a consolidação do mito em torno de seu nome, bem como simbolizaram a continuidade da práxis contida no seu repertório de luta (e até mesmo de sua produção intelectual). Para compreender os derradeiros momentos de Che, Luiz Bernardo Pericás, com evidente rigor metodológico, realizou um minucioso levantamento documental e bibliográfico acerca da presença de Guevara em terras bolivianas (bem como a ressonância de seus atos, que perdura até a contemporaneidade) a partir de extensa pesquisa de campo, feita no local dos acontecimentos narrados, a partir de entrevistas com personagens centrais e da compilação de documentos históricos (alguns dos quais, inéditos no Brasil), como cartas, diários, comunicados, discursos, fotografias e mapas.

Che Guevara e a luta revolucionária na Bolívia, em sua terceira edição, resulta da atualização do livro publicado originalmente em 1997 e é composto por sete capítulos divididos em duas partes, além da conclusão e da destacada reunião de documentos históricos nos anexos. A estrutura da obra conduz o leitor para os caminhos que levaram Che Guevara à guerrilha na Bolívia – com ênfase sobre as atividades desempenhadas junto ao Exército de Libertação Nacional (ELN) – até a concentração de esforços contidos na operação militar que culminou na sua captura e subsequente execução.

Apesar do direcionamento da segunda parte da obra para a análise dos vínculos políticos estabelecidos pelo guerrilheiro e dos impactos desse período de cerca de um ano sobre a criação do mito em torno de seu nome – sobretudo para os grupos envolvidos nessa luta –, o leitor não registrará uma abrupta ruptura entre esses blocos, uma vez que Pericás compõe os dois primeiros capítulos com diversos personagens e conceitos que são retomados e aprofundados na segunda parte (capítulos três ao sete).

A primeira parte da obra, porém, não se resume a um relato ou registro biográfico das últimas movimentações de Che Guevara; pelo contrário, apresenta os fatos contidos desde os primeiros anos da década de 1960, permeados pela conjuntura conflitante da América do Sul diante da escalada de forças repressivas em contraposição ao crescimento das guerrilhas na região. Nos tópicos do primeiro capítulo, Luiz Bernardo Pericás demonstra a importância que Guevara deu à Bolívia para concretizar a expansão da luta armada, a qual, segundo o comandante, seria uma necessidade, em vista do bloqueio promovido pelos Estados Unidos (o livro também discute as atividades empreendidas pelo guerrilheiro no continente africano).

Embora a luta na Bolívia combinasse outros elementos favoráveis para a presença de Che no país, como a estratégica localização geográfica e a hipotética facilidade do idioma – apesar das línguas dos povos originários, como quéchua, aimará e guarani, que os guerrilheiros estudaram de forma rudimentar ou sequer conheciam –, a sua intenção inicial era levar adiante a luta na Argentina ou no Peru, o que não foi possível.

As ações de Che junto ao povo local (fossem trabalhadores, membros das comunidades indígenas ou dos movimentos políticos) evidenciaram a atenção e o respeito dedicados às especificidades daquela sociedade. Sendo assim, a contribuição da obra reside também sobre a criação de uma visão alternativa a respeito do êxito acumulado por Che Guevara em terras bolivianas, posto que, embora o final trágico receba o maior destaque na maioria das narrativas e o triunfo da revolução socialista não tenha ocorrido, as transformações de longa duração promovidas pela presença de Che em cada um dos grupos envolvidos na luta revolucionária boliviana ficam evidenciadas na segunda parte da obra.

Che Guevara combateu, conforme aponta Luiz Bernardo Pericás, em uma região classificada como “uma das mais conservadoras e politicamente atrasadas da Bolívia” (p. 181), mas despertou reações nos diferentes movimentos e partidos de esquerda daquele país, ainda que esses apresentassem variadas tendências, com diferentes níveis de aproximação da luta armada (sobretudo naquele momento). As distintas acepções sobre o caminho que levaria a sociedade boliviana à revolução contribuíram diretamente para a fragmentação do apoio à guerrilha. Ainda que, predominantemente, a posição oficial dos diversos grupos fosse de apoio, a adesão foi dispersa, comprometendo a unidade revolucionária de combate ao imperialismo, almejada por Che. O diagnóstico de Guevara, contudo, não poderia ser mais preciso, uma vez que, ao lutar na Bolívia, estabeleceu-se um enfrentamento direto com os interesses estadunidenses.

A análise da conjuntura política e o detalhamento da contribuição de partidos de esquerda para a guerrilha dialogam com o histórico acadêmico de Luiz Bernardo Pericás, que reúne importantes estudos e publicações acerca dos movimentos revolucionários em países da América Latina, bem como sobre as teorias e tendências formadas em torno das ideologias de esquerda que surgem nessa região, como em sua conhecida obra Caminhos da revolução brasileira (Boitempo).

Che Guevara – que, diga-se de passagem, já colecionava feitos incríveis –, por conta de sua experiência na Bolívia, assumiu diversas formas para os bolivianos: desde a figura de um agitador e promotor da consciência de classes para os trabalhadores (ao enfrentar os desafios do atraso da sociedade local) até a de troféu para as forças opressoras a serviço de interesses externos. A permanência de elementos que remetem a Guevara evidencia essa ampla influência.

A obra – juntamente com Che Guevara e o debate econômico em Cuba, também publicada pelo Boitempo –, posiciona Luiz Bernardo Pericás entre os principais especialistas sobre o guerrilheiro argentino convertido em cidadão global. O autor, afinal, supre uma lacuna deixada pelos biógrafos de Che Guevara, demonstrando que a guerrilha do ELN contribuiu diretamente para a mitificação de Guevara, sobretudo na sociedade boliviana. Além disso, destaca-se a iniciativa de lançar luz sobre outros temas, com argumentos que elucidam motivações e caminhos, para além do ímpeto revolucionário do personagem, e que auxiliam na compreensão sobre sua empreitada nas selvas bolivianas.

*Matheus Ataliba da Silva é mestrando em história econômica na USP.

Referência

Luiz Bernardo Pericás. Che Guevara e a luta revolucionária na Bolívia. 3ª. Edição. São Paulo, Boitempo, 2023, 416 págs. [https://amzn.to/3Pj8YHn]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Razões para o fim da greve nas Universidade Federaisbancos 16/05/2024 Por TADEU ALENCAR ARRAIS: A nova proposta do Governo Federal anunciada dia 15 de maio merece debate sobre continuar ou não a greve
  • O negacionismo ambiental e a inundação de Porto Alegreporto alegre aeroporto alagado 14/05/2024 Por CARLOS ATÍLIO TODESCHINI: Porto Alegre tem o melhor sistema de proteção contra cheias do Brasil. É considerado um “minissistema holandês”. Por que esse sistema falhou em sua função de evitar que a cidade fosse alagada?
  • A universidade operacionalMarilena Chauí 2 13/05/2024 Por MARILENA CHAUI: A universidade operacional, em termos universitários, é a expressão mais alta do neoliberalismo
  • A mão de OzaJoao_Carlos_Salles 14/05/2024 Por JOÃO CARLOS SALLES: O dever do Estado brasileiro e a universidade contratada
  • Como mentir com estatísticascadeira 51 18/05/2024 Por AQUILES MELO: Os números apresentados pelo governo federal aos servidores da educação em greve mais confundem do que explicam, demonstrando, assim, desinteresse na resolução do problema
  • A “multipolaridade” e o declínio crônico do OcidenteJosé Luís Fiori 17/05/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A defesa da multipolaridade será cada vez mais a bandeira dos países e dos povos que se insurgem neste momento contra o imperium militar global exercido pelo Ocidente
  • O cavalo Caramelocavalo caramelo 15/05/2024 Por LEONARDO BOFF: Há que se admitir que nós não temos respeitado os direitos da natureza com seu valor intrínseco, nem posto sob controle nossa voracidade de devastá-la
  • A greve nas universidades e institutos federais não…caminho tempo 17/05/2024 Por GRAÇA DRUCK & LUIZ FILGUEIRAS: As forças de esquerda e democráticas precisam sair da passividade, como que esperando que Lula e o seu governo, bem como o STF resolvam os impasses políticos
  • Pensar após GazaVladimir Safatle 08/05/2024 Por VLADIMIR SAFATLE: Desumanização, trauma e a filosofia como freio de emergência
  • SUS, 36 anos – consolidação e incertezasPaulo Capel Narvai 15/05/2024 Por PAULO CAPEL NARVAI: O SUS não foi o “natimorto” que muitos anteviram. Quase quatro décadas depois, o SUS está institucionalmente consolidado e desenvolveu um notável processo de governança republicana

AUTORES

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES